Tributário

Portaria do Ministério da Fazenda não atinge a persecução criminal do Ministério Público.

No Século passado, o SJT, com base no art. 1º, da Lei nº 9.469/97, aplicava o princípio da insignificância para casos de crime contra a ordem tributária federal e descaminho desde que não ultrapassassem o patamar de R$ 1.000,00 (mil reais).

Esse valor foi alterado para R$ 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais), com a redação original do art. 20, da Lei nº 10.522/2002, considerando que esses débitos seriam irrelevantes e incapazes de lesar o interesse fiscal da União.

A partir de 2004, esse patamar foi novamente elevado, pela Lei nº 11.033/2004, para o valor igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais).

No REsp nº 685.135/RS, em 15/03/2005, a 5ª Turma, mudou esse entendimento para adotar como melhor parâmetro para afastar a relevância penal da conduta aquele utilizado pela PGFN para extinguir o débito fiscal, consoante dispõe o art. 18, § 1º, da Lei nº 10.522/2002, que determina o cancelamento da dívida tributária igual ou inferior a R$ 100,00 (cem reais).

O STF, entretanto, em 07/11/2008, no julgamento do Habeas Corpus nº 95.749/PR, relatado pelo Min. Eros Grau, da 2ª Turma, afirmou ser é inadmissível que a conduta de não pagar tributo inferior à R$ 10.000,00 (dez mil reais) seja irrelevante para a Administração Fazendária, mas continue sendo relevante para o direito penal e a persecução criminal do Ministério Público.

Em 18/08/2009, no julgamento do Habeas Corpus nº 99.594/MG, relatado pelo Min. Carlos Ayres Britto, da 1ª Turma, o STF afirmou que “não há sentido lógico permitir que alguém seja processado, criminalmente, pela falta de recolhimento de um tributo que nem sequer se tem a certeza de que será cobrado no âmbito administrativo-tributário”.

O STJ, então, em 09/09/2009, consolidou seu entendimento (Tema nº 157), no julgamento do REsp nº 1.112.748/TO, Rel. Min. Felix Fischer, pela incidência do princípio da insignificância aos crimes tributários federais e de descaminho nas situações em que o débito tributário não supere o valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais).

Com a publicação das Portarias nº 75 e nº 130, em 2012, ambas do Ministério da Fazenda, a jurisprudência iniciou divergência para que o valor fosse atualizado ao patamar de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) para arquivamento de processos de execução fiscal, sem baixa na distribuição.

Essas Portarias se propuseram a regulamentar o que está previsto na Lei nº 10.522/2002, e impactaram no conteúdo normativo do seu art. 20 (possibilidade de arquivamento de execuções fiscais de débitos com valor consolidado igual ou inferior a R$ 10.000,00).

O STF, a partir de 04/02/2014, no Habeas Corpus nº 120.617/PR (1ª T, Rel. Min. Rosa Weber), passou a decidir que o novo parâmetro valorativo para aplicação do princípio da insignificância seria aquele definido nas tais Portarias, tendo julgado a 1ª Turma 11 (onze) processos, e a 2ª Turma um caso concreto sobre o tema.

A 3ª Seção do STJ, então, em 28/02/2018, revisou o Tema nº 157, pela incidência do princípio da insignificância aos crimes tributários federais e de descaminho nas situações em que o débito tributário não supere o valor de R$ 20.000,00 (vinte mil reais).

Atualmente, por força da Lei nº 13.874/2019, o art. 20 da Lei nº 10.522/2002, possui a seguinte redação:

Art. 20. Serão arquivados, sem baixa na distribuição, por meio de requerimento do Procurador da Fazenda Nacional, os autos das execuções fiscais de débitos inscritos em dívida ativa da União pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional ou por ela cobrados, de valor consolidado igual ou inferior àquele estabelecido em ato do Procurador-Geral da Fazenda Nacional.

§ 1o Os autos de execução a que se refere este artigo serão reativados quando os valores dos débitos ultrapassarem os limites indicados.

A surpresa no tema foi o julgamento do STF, em 11/05/2020, do Habeas Corpus nº 163.559/SC, Rel. Min. Marco Aurélio, da 1ª Turma, cuja ementa é a seguinte: “DESCAMINHO – TRIBUTO – VALOR – INSIGNIFICÂNCIA – ALCANCE. O que previsto em portaria não alcança persecução criminal a cargo do Ministério Público.”

A ordem político-criminal resta surpreendida, pelo menos por ora, com novo marco para aplicação do princípio da insignificância nos crimes contra ordem tributária federal e descaminho, qual seja: o que o Ministério da Fazenda determinou nas Portarias nº 75 e nº 130, em 2012, não impacta na persecução criminal do Ministério Público.

O STF e STJ, talvez agora, voltarão a usar o limite de R$ 10.000,00 (dez mil reais) previsto no art. 20, da Lei nº 10.522/2002, mas o ideal seria aproveitar o sentimento social de basta à corrupção e intolerância ao mal gerado pela sonegação fiscal para dar prevalência ao entendimento de 2005, contido no REsp nº 685.135/RS, da 5ª Turma, do STJ, para afastar a relevância penal da conduta aquele utilizado pela PGFN para extinguir o débito fiscal, conforme está disposto no art. 18, § 1º, da Lei nº 10.522/2002, que determina o cancelamento da dívida tributária igual ou inferior a R$ 100,00 (cem reais).

Ora, se apenas 8% das execuções fiscais conseguem atingir a finalidade que se propõe, logo, independente do valor mínimo para arquivamento de processo executivo, as ações penais estariam fadadas à incidência do princípio da insignificância.

Se a estratégia administrativa, prevista em lei, é pedir para arquivar processos de valor igual ou inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais), e mesmo assim 92% dos processos que sobram ativos não conseguem satisfazer o crédito da União, então, por que os agentes criminosos desses casos, também, não têm suas ações penais impactadas pela tese da bagatela?

A política fiscal para execuções fiscais é inoperante e ineficaz, então, além de não pagar o tributo, o agente ativo não sofre com processo penal se a dívida for igual e inferior a R$ 10.000,00 (dez mil reais).

Os juristas romanos já diziam de minimis non curat Praetor, ou seja, o pretor não se ocupa com quinquilharias.

A rainha Christina da Suécia, no Século XIX, dizia aquila non capit muscas, ou seja, a águia não caça moscas.

Todavia, o eminente Subprocurador-Geral da República, Dr. Carlos Eduardo de Oliveira Vasconcelos, dizia que: “[…] de pequenos descaminhos sobrevive um gigantesco comércio internacional limítrofe, causando prejuízos à indústria nacional, perda de postos de trabalho e lesão aos cofres públicos.”

A máquina de cobrança do Estado, em lei, elegeu o patamar de R$ 10.000,00 (dez mil reais) para iniciar o processo contra o devedor, mas isso não significa que a máquina de punição do Estado tenha que curvar e obedecer esse mesmo parâmetro, e isso porque sua missão é desestimular o ilícito e a cessação do dano aos cofres públicos.

Se a máquina punitiva não funciona e a máquina de cobrança é ineficaz, então, na verdade, o Estado brasileiro está premiando o sonegador, o sacoleiro, o empregador que deixa de recolher os valores retidos dos seus funcionários etc.

Se o prejuízo (o resultado do crime) será ou não objeto de cobrança por uma execução fiscal, não pode ser motivo relevante para livrar o agente do ilícito de responder, criminalmente, por sua ação delituosa.

O estoque da Dívida Ativa da União gira em torno de R$ 2,2 trilhões, correspondentes a débitos de 4,6 milhões de devedores, e desse total, R$ 1,4 trilhão são devidos por apenas 16 mil grandes devedores, assim consideradas as pessoas físicas ou jurídicas cujo débito consolidado supera R$ 15 milhões.

São 7,3 milhões de inscrições em dívida ativa da União consideradas de difícil recuperação ou irrecuperável, que representam um valor aproximado de R$ 1,3 trilhão, sob a responsabilidade de 1,7 milhões de devedores.

Se a PGFN escolher o caminho da transação fiscal (Lei nº 13.988, de 14 de abril de 2020), e concentrar sua estrutura para os grandes devedores brasileiros, bem como para aqueles que são classificados como contumazes, e alterar o parâmetro para R$ 1.000.000,00 (um milhão de reais), nos termos do Projeto de Lei nº 1.646/2019 do Congresso Nacional, estaria o Ministério Público impedido de perseguir justiça criminal contra todos os agentes ativos cuja dívida estivesse abaixo desse valor?

Ora, classificar como irrecuperável é o mesmo que considerar aquela execução fiscal como passível de arquivamento, logo, os 1,7 milhões de devedores dessas 7,3 milhões de dívidas, certamente, estariam livres da persecução criminal do Ministério Público.

Em 22/05/2020, entretanto, o STF, dessa vez a 2ª Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, deixa claro que o criminoso não ficará mais confortável na continuidade dos atos ilícitos de sonegação fiscal e descaminho, no julgamento do Agravo Regimental no Habeas Corpus nº 160.239/SP, cujos trechos abaixo merecem ser transcritos:

Agravo regimental em habeas corpus. 2. Descaminho e sonegação fiscal. 3. Princípio da insignificância. Incidência da Portaria n. 75/2012. Impossibilidade de aplicação. Questão que não se trata apenas do quantum suprimido ou reduzido do tributo devido, mas também deve-se valorar negativamente a falsificação ou a adulteração dos documentos apresentados à administração, para se obter o resultado delitivo. 4. Precedentes no sentido de afastar o princípio da insignificância a reincidentes ou de habitualidade delitiva comprovada. 5. Ausência de argumentos capazes de infirmar a decisão agravada. 6. Agravo regimental a que se nega provimento. […] O SENHOR MINISTRO GILMAR MENDES (RELATOR): O agravante não trouxe argumentos suficientes a infirmar a decisão. Visa apenas à rediscussão da matéria, já decidida em conformidade com a jurisprudência pacífica do Supremo Tribunal Federal. Como já demonstrado na decisão ora agravada, O STF tem entendido que, para a incidência do princípio da insignificância, alguns vetores devem ser considerados, quais sejam: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) a ausência de periculosidade social da ação; c) o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; d) a inexpressividade da lesão jurídica causada (Cf. HC 84.412/SP, rel. Min. Celso de Mello, 2ª Turma, unânime, DJe 19.11.2004). No presente caso, verifico que três desses vetores não se encontram presentes: a mínima ofensividade da conduta do agente, o reduzido grau de reprovabilidade e a inexpressividade da lesão jurídica causada. Isso porque não se cuida, tão somente, de sopesar o caráter pecuniário do tributo sonegado, mas, principalmente de analisar os reais bens jurídicos tutelados e de que maneira são atingidos pela prática da conduta descrita no art. 1º, inciso IV, da Lei n.º 8.137/90. Por esse prisma, o raciocínio jurídico que conclui pela atipicidade do crime do descaminho, conforme o valor do tributo iludido, não pode ser aplicado ao delito de sonegação. Registra-se, ainda, que não se trata apenas do quantum suprimido ou reduzido do tributo devido, mas também deve-se valorar negativamente a falsificação ou a adulteração dos documentos apresentados à administração, para se obter o resultado delitivo. Assim, resta inadmissível a aplicação do princípio da bagatela pela gravidade concreta do crime praticado.

O Tribunal Regional Federal da 5ª Região, em 12/03/2020, Rel. Des. Paulo Machado Cordeiro, produziu julgamento relevante e esclarecedor sobre o tema, cujos trechos merecem ser transcritos abaixo:

PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO DA DEFESA. ART. 1º, I, DA LEI 8.137/90, C/C ART. 71, DO CPB. RESPONSABILIZAÇÃO OBJETIVA. INOCORRÊNCIA. PROVAS INCONTESTES DA AUTORIA, MATERIALIDADE DELITIVA E DOLO A MACULAR A CONDUTA. TIPIFICAÇÃO CORRETA E DESMERECEDORA DE DESCLASSIFICAÇÃO. DOSIMETRIA. REDUÇÃO DA PENA-BASE E, CONSEQUENTEMENTE, DA PENA DE MULTA. APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE. CONTINUIDADE DELITIVA. CONFIGURAÇÃO. FRAÇÃO APLICADA DE MANEIRA CORRETA E SEDIMENTADA EM ENTENDIMENTO DO STJ E DESTE TRF5. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO.

[…] 8. Por toda a fundamentação consignada pela juíza sentenciante, inclusive pelos trechos negritados e já reproduzidos nesse ato, a conduta perpetrada pelo agente restou plenamente tipificada no art. 1º, I, da Lei 8.137/90, que trata de crime material e se consuma quando há efetiva sonegação tributária- “suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório (…)” -, como foi o caso. Nesse diapasão, não custa rememorar que a conduta tipificada pelo art. 2º, I, da Lei 8.137/90, diversamente da ora tratada, é crime formal – e não material, como o cominado ao acusado – e se configura quando, apesar de ter havido omissão/falsidade por parte do agente, não chegou a haver efetiva sonegação, ponto em que reside o motivo de ser menos severa a penalidade. Em suma, tendo havido efetiva sonegação fiscal, como foi o caso dos autos, estamos diante do cometimento do delito previsto no art. 1º da Lei 8.137/90 (crime material). Por outro lado, existindo omissão/falsidade sem que delas tenham decorrido efetiva sonegação, estamos diante do delito previsto no art. 2º do mesmo diploma legal (crime formal), sendo o este residual em relação àquele. 9. Redução da pena-base ao mínimo legal, por inidoneidade dos fundamentos utilizados para justificar a circunstância judicial reconhecida como negativa (consequências do crime). 10. Quanto à dosimetria, especificamente no que toca à primeira fase, observamos que o juízo de piso considerou como negativa apena uma das circunstâncias judiciais dentre as 08 previstas pelo art. 59 do CPB, […] 11. Com a devida vênia, entendemos que o valor, diversamente do que ocorre na maioria de ilícitos do presente viés, fora reduzido, não podendo ser sopesado como circunstância negativa para aumentar a pena-base. 12. Nesse sentido, cumpre ver que a própria magistrada admite que as consequências não foram “tão expressivas” e que o “acusado somente responde por um dano de aproximadamente de R$ 23.365,33”, conclusões, inclusive, contraditórias quando o arremate fora pela negatividade. 13. Assim sendo, entendemos que, sendo todas as circunstâncias judiciais consideradas positivas, a pena-base privativa fixada deve ser a mínima, ou seja,02 anos de reclusão. 14. Quanto à continuidade delitiva (causa de aumento de pena), esta ocorrera sim, pelos próprios fundamentos declinados na sentença: […] 15.Tendo o crime sido perpetrado por 12 vezes em cadeira, a fração de 2/3 aplicada fora legítima, legal e proporcional ao caso, como bem tem destacado a jurisprudência. 16. Com tais considerações, temos que a pena privativa de liberdade definitiva é de 02 anos + 2/3 (art. 71), que finda em03 anos e 04 meses de reclusão. 17. Na cadência e por todo o exposto, reduzimos também quantidade de dias-multa para100 dias-multa. 18. Quanto ao valor do dia-multa, todavia, deve ser mantido inalterado em virtude da condição econômica do acusado, que declarou ter renda média mensal entre R$ 10.000,00 a R$ 15.000,00.  19. Aplicação do princípio da insignificância. 20. Sem maiores delongas, ainda que se possa afirmar que o valor sonegado não fora elevado, também não se pode considerá-lo, por motivos óbvios, insignificante. Aliás, de maneira bem concisa, técnica e objetiva, rememorou a PRR no seguinte trecho do parecer ofertado que: (…) Ademais, não cabe falar na aplicação do princípio da insignificância, uma vez que o valor suprimido pela ação delitiva, sem acréscimo decorrente da aplicação de juros e mora, ultrapassa o limite fixado no art. 1º, II, da Portaria nº 75/2012, do Ministério da Fazenda. (…) 21.Afastamento da aplicação da continuidade delitiva, considerando que os fatos diriam respeito a apenas um auto de infração e a um exercício fiscal (2014). 22. Sobre a perfeita caracterização da continuidade delitiva – inclusive acerca da justeza da fração aplicada ao caso – este ato já traçou as merecidas linhas. 23. Redução da pena de multa em razão da capacidade financeira do apelante. 24. O tema também já fora tratado neste julgando, mas não é demais ponderar ser justo, proporcional e razoável que uma pessoa com renda entre R$ 10.000,00 a R$ 15.000,00 pague 1/10 do salário-mínimo por cada dia-multa aplicado. 25. Recurso parcialmente provido para reduzir a pena privativa de liberdade, bem como a quantidade de dias-multa. (PROCESSO: 00001807320174058300, ACR – Apelação Criminal, DESEMBARGADOR FEDERAL PAULO MACHADO CORDEIRO, 2ª Turma, JULGAMENTO: 12/03/2020)

No Senado Federal, está no Plenário, desde 28/05/2020, o Projeto de Lei nº 2.972, de 2020, de autoria da Senadora Rose de Freitas (PODEMOS/ES), cuja ementa é a seguinte:

Altera o art. 1 da Lei n 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e o art. 337-A do Decreto-Lei n 2.848, de 7 de dezembro de 1940, para equiparar as penas previstas para os crimes de sonegação fiscal às previstas para os crimes de corrupção ativa e passiva.

Enfim, os crimes contra a ordem tributária federal e de descaminho estão se livrando da incidência do princípio da insignificância, numa louvável mudança de premiação do criminoso para o bom e regular contribuinte.