Empresarial

Justiça Criminal cooperativa, negociada e premiada.

O acordo de colaboração premiada é negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, que pressupõe utilidade e interesse públicos (art. 3º, Pacote Anticrime).

Na doutrina, a melhor definição de colaboração premiada é a seguinte:

é um meio de obtenção de prova, por meio de fonte humana que cometeu ato criminoso e que, com a confissão hiperqualificada, auxiliará o Estado na desestruturação de organização criminosa e poderá, ao término do devido processo legal, receber um dos benefícios previstos estabelecidos em lei, caso efetiva e voluntária a colaboração, com a aplicação e mensuração que serão definidas pelo juízo competente, de acordo com a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão do fato criminoso e a eficácia dessa colaboração.[1]

A aplicação desse instituto visa desestruturar organizações criminosas, que são tipificadas, nos termos da Lei nº 12.850, de 02 de agosto de 2013, como:

a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional.

O TRF da 5ª Região, Des. Federal Relator, convocado, Dr. Gustavo de Paiva Gadelha, no julgamento de apelação criminal, em 07/02/2020, processo nº 0800141-54.2019.4.05.8306, registrou com precisão as características do tipo penal do art. 2º da Lei nº 12.850/2013, nos seguintes termos:

a) Associação estruturalmente ordenada.

“Aqui se trata de uma união de pessoas com um objetivo ilícito, de modo que a utilização do termo associação serve aos fins de deixar claro que o conceito somente é aplicável quando houver algum grau de permanência ou estabilidade, de modo a distinguir a organização e a associação do mero concurso de agentes, ainda que a lei brasileira, ao contrário da Convenção de Palermo, não exija que a organização seja existente há algum tempo”

(GONÇALVES. Victor Eduardo Rios. Legislação penal especial esquematizada. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2017)Esse requisito foi comprovado à saciedade, já que os réus compunham um grupo estável, que atuava diuturnamente com o firme propósito de ensejar falsificações documentais. b) Pluralidade de agentes. As provas demonstraram que a formação do grupo se dera com mais de quatro pessoas. c) Divisão de tarefas. Havia divisão de tarefas, já que os réus ficavam, como visto, com a parte referente aos contatos necessários para a realização das contrafações e seus desdobramentos. d) Fim de obtenção de vantagem. A obtenção de vantagem econômica era patente. e) Prática de infrações penais graves ou transnacionais. “Exige-se, ainda, que a organização busque alcançar os seus objetivos mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional” (op. cit.). Ambos os crimes que constituíam a tessitura da ORCRIM preceituam pena máxima superior a quatro anos (artigos 297 e 171 do Código Penal).

Não existe distinção entre delação e colaboração premiada, uma vez que a delação foi o nome atribuído pelo legislador brasileiro ao introduzir o instituto por meio da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, e que, nos tempos atuais, está normatizada com o nome de colaboração, com sua regulamentação procedimental contida na Lei nº 12.850, de 02 de agosto de 2013.

Desde a sua introdução (art. 8º, parágrafo único, da Lei nº 8.072/90) no sistema jurídico de prevenção e combate aos crimes hediondos, a delação foi ampliada para integrar as legislações especiais que tratam, por exemplo:

(1) das organizações criminosas brasileiras (Lei nº 9.034/95, revogada pela Lei nº 12.850/13); (2) doscrimes contra o sistema financeiro nacionall (Lei nº 7.492/86, com redação dada pela Lei nº 9.080/95); (3) dos crimes contra a ordem tributária, econômica e relações de consumo (Lei nº 8.137/90, com redação dada pela Lei nº 9.080/95); (4) do combate à lavagem de dinheiro (Lei nº 9.613/98); (5) da proteção a vítimas e testemunhas (Lei nº 9.807/99); (6) das normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas (Lei nº 11.343/06); (7) de aperfeiçoamento da legislação penal e processual penal (Lei nº 13.964/19).

No Senado Federal foi protocolado requerimento (RQS nº 1.077 de 2019), de autoria do Senador Marcos do Val (PODEMOS/ES), que está pronto para deliberação do Plenário, desde 04/12/2019, pelaconstituiçãoo de uma Comissão composta por 7 (sete) juristas com a finalidade de elaborar um projeto de Código Nacional de Combate à Corrupção e aos Crimes de Colarinho Branco, a partir da consolidação, atualização e aprimoramento das normas federais de combate à corrupção e aos crimes de colarinho branco vigentes.

Devem ser considerados para aplicação da colaboração premiada:

  a relevância das declarações/informações prestadas pelo agente colaborador; a efetividade de sua colaboração; a natureza dos fatos investigados e apurados; a personalidade do agente colaborador; a repercussão social dos fatos apurados, a gravidade, e as circunstâncias dos fatos. [2]

São objetivos e subjetivos os critérios para definir os prêmios que serão escolhidos dentre os aplicáveis ao réu ou acusado colaborador.

Os critérios objetivos estão contidos no art. 6º da Lei nº 12.850/13 (deverá ser feito por escrito e conter: o relato da colaboração e seus possíveis resultados; as condições da proposta do Ministério Público ou do Delegado de Polícia; a declaração de aceitação do colaborador e de seu defensor; e as assinaturas do representante do Ministério Público ou do Delegado de Polícia, do colaborador e de seu defensor), e no art. 104, inciso II, do Código Civil (objeto lícito, possível e determinado ou determinável).

O MPF, além desses citados critérios objetivos, possui Orientação Conjunta para a 2ª e 5ª Câmaras de Coordenação e Revisão de Combate à Corrupção, que prevê o seguinte detalhamento formal para instrução da proposta de colaboração:

13. Incumbe à defesa instruir a proposta de colaboração e os anexos com os fatos adequadamente descritos, com todas as suas circunstâncias, indicando as provas e os elementos de corroboração. 13.1. Cada fato típico descrito ou conjunto de fatos típicos intrinsecamente ligados deverá ser apresentado em termo próprio e apartado (anexo) a fim de manter o necessário sigilo sobre cada um deles e possibilitar sua investigação individualizada; 13.2. Os anexos devem conter, no mínimo, os seguintes elementos: a) descrição dos fatos delitivos; b) duração dos fatos e locais de ocorrência; c) identificação de todas as pessoas envolvidas; d) meios de execução do crime; e) eventual produto ou proveito do crime; f) potenciais testemunhas dos fatos e outras provas de corroboração existentes em relação a cada fato e a cada pessoa; g) estimativa dos danos causados;

Os critérios subjetivos foram bem delimitados nos parágrafos do art. 4º da Lei nº 12.850/13, com a redação conferida pela Lei nº 13.964, de 24 de dezembro de 2019 (Pacote Anticrime, que vigora desde 23/01/2020), e no que foi decidido pelo STF, nos julgamentos dos Habeas Corpus nº 127.483/PR, e nº 129.877/RJ.

Do Habeas Corpus nº 127.483/PR, cujo inteiro teor possui 154 folhas, podemos destacar o seguinte:

4. A colaboração premiada é um negócio jurídico processual, uma vez que, além de ser qualificada expressamente pela lei como “meio de obtenção de prova”, seu objeto é a cooperação do imputado para a investigação e para o processo criminal, atividade de natureza processual, ainda que se agregue a esse negócio jurídico o efeito substancial (de direito material) concernente à sanção premial a ser atribuída a essa colaboração. […] 8. A personalidade do colaborador não constitui requisito de validade do acordo de colaboração, mas sim vetor a ser considerado no estabelecimento de suas cláusulas, notadamente na escolha da sanção premial a que fará jus […] 9. A confiança no agente colaborador não constitui elemento de existência ou requisito de validade do acordo de colaboração. 10. Havendo previsão em Convenções firmadas pelo Brasil para que sejam adotadas “as medidas adequadas para encorajar” formas de colaboração premiada (art. 26.1 da Convenção de Palermo) e para “mitigação da pena” (art. 37.2 da Convenção de Mérida), no sentido de abrandamento das consequências do crime, o acordo de colaboração, ao estabelecer as sanções premiais a que fará jus o colaborador, pode dispor sobre questões de caráter patrimonial, como o destino de bens adquiridos com o produto da infração […]. 11. Os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança tornam indeclinável o dever estatal de honrar o compromisso assumido no acordo de colaboração, concedendo a sanção premial estipulada, legítima contraprestação ao adimplemento da obrigação por parte do colaborador.

Do Habeas Corpus nº 129.877/RJ, cujo inteiro teor possui 33 folhas, podemos destacar o seguinte:

(b) A colaboração premiada recebeu regramento específico a partir da Lei 9.807/99, que dispensou a espontaneidade e passou a admitir a concessão do “perdão judicial e a consequente extinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal” (art. 13); (c) A voluntariedade e a espontaneidade, embora constituam conceitos juridicamente diversos, podem ser aproximadas pela sinonímia gramatical, que reduz ambas ao conceito de voluntariedade, ou seja, sem perquirição das circunstâncias e motivações do ato, bastando que seja praticado pelo agente sem coação moral ou física. […] É importante pontuar que estes conceitos não surgiram com o instituto da colaboração premiada. Ao contrário, estão previstos, de longa data, em nosso direito penal positivo, caracterizando institutos distintos como, v. g., o da “desistência voluntária” e o da “confissão espontânea”, previstos, respectivamente, nos artigos 15 e 65, III, d, do Código Penal.

Os prêmios aplicáveis ao réu ou acusado colaborador são aqueles previsto em lei, e merecem ser discutidos após a definição sobre os fatos delitivos e a suficiência dos anexos e dos elementos de corroboração:

(1) a redução da pena em até 2/3 (dois terços); (2) a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos; (3) a não propositura da ação penal, nos casos de colaboração na fase inquisitorial; (4) a redução de até metade da pena imposta; (5) e/ou a progressão de regime, caso haja colaboração na fase de execução.

O MPF, além desses citados prêmios, possui manual que prevê outros benefícios ao colaborador na apuração de fatos criminosos, desde que respeitem aConstituiçãoo, a lei, os princípios gerais de Direito, e que não atentem contra a moral, os bons costumes e a ordem pública[3].

Vale citar que a colaboração premiada pode produzir efeitos cíveis, no âmbito de atribuição do MPF, nos termos do item 35, da Orientação Conjunta nº 1/2018, quais sejam:

(a) antecipação da reparação dos danos causados à vítima, ainda que parcial; (b) compromisso de não propor ações civis públicas de reparação, da lei anticorrupcao ou qualquer outra ação com pedido condenatório; (c) compromisso de suspender o trâmite processual ou a execução das sentença condenatórias obtidas em ações de improbidade administrativa, a partir do cumprimento e satisfação dos termos do acordo; (d) estipulação de cumprimento voluntário de penalidades previstas nalei de improbidade administrativaa ou nalei anticorrupcaoo.

Os benefícios que poderão ser propostos pelo Ministério Público Federal devem considerar parâmetros objetivos (item 18, Orientação Conjunta nº 01/2018), quais sejam:

(1) quantidade de fatos delitivos narrados pelo colaborador; (2) oportunidade da colaboração (ou seja, o momento em que revelou os fatos desconhecidos à investigação); (3) a natureza e credibilidade da descrição dos fatos narrados; (4) a culpabilidade do agente em relação ao fato; (5) os antecedentes criminais; (6) a disposição do agente em cooperar com a investigação e persecução de outros fatos; (7) os interesses da vítima; (8) o potencial probatório da colaboração e outras consequências em caso de condenação; (9) as provas apresentadas pelo colaborador e as linhas de investigação ampliadas.

O benefício de não exercício da ação penal somente deverá ser proposto pelo MPF em situações extraordinárias (item 20, OC nº 1/18), e além dos requisitos do art. 4ºº,§ 4ºº e§ 4º-AA, da Lei nº12.85000/2013, devem ser considerados os seguintes parâmetros:

a) a gravidade da ofensa e a importância do caso para se alcançar efetiva aplicação e observância das leis penais; b) o valor da potencial declaração ou das provas a serem produzidas para a investigação ou para o processo; c) a qualidade do material probatório apresentado e das declarações do colaborador; d) a culpabilidade da pessoa em relação aos outros acusados; e) a possibilidade de processar de maneira eficaz o acusado, sem a concessão do benefício de não exercício da ação penal; f) reparação integral do dano, se for o caso; g) seja inédita a infração alardeada pelo colaborador (não líder da organização criminosa, primário, e ter sido o 1º a fornecer a tal informação nova).

O Pacote Anticrime (art. 14) adicionou e consolidou os aspectos que o Juiz deve considerar quando da homologação do acordo, quais sejam (art. 4º, § 7º, da Lei nº 12.850/2013):

I – regularidade e legalidade; II – adequação dos benefícios pactuados àqueles previstos no caput e nos §§ 4º e 5º deste artigo [art. 4º], sendo nulas as cláusulas que violem o critério de definição do regime inicial de cumprimento de pena do art. 33 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), as regras de cada um dos regimes previstos no Código Penal e na Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal) e os requisitos de progressão de regime não abrangidos pelo § 5º deste artigo; III – adequação dos resultados da colaboração aos resultados mínimos exigidos nos incisos I, II, III, IV e V do caput deste artigo [art. 4º]; IV – voluntariedade da manifestação de vontade, especialmente nos casos em que o colaborador está ou esteve sob efeito de medidas cautelares.

No TRF da 5ª Região, sob o assunto “Crimes previstos na Lei da Organização Criminosa”, distribuídos no 2º grau, de 01/01/2016 a 31/05/2020, foram encontrados 4 (quatro) processos[4]. E num deles se menciona a colaboração premiada como justificativa para não inclusão de colaborador no processo penal, cujo trecho merece transcrição:

  1.3.5. Das Colaborações Premiadas. Nesse momento, necessário esclarecer que […], procurador da empresa […], não foi incluído no polo passivo da presente ação em razão de estar negociando com o Ministério Público Federal acordo de colaboração premiada. Dessa forma, além de já entregar voluntariamente os elementos de prova de que dispõe, há possibilidade de, acaso homologado o acordo, ele obter a exclusão de sua responsabilidade. Por essa circunstância, este Procurador da República entende que, se demandado agora, tal ato feriria a boa-fé e a confiança que devem nortear as tratativas em torno de colaborações premiadas, além de ser medida inútil do ponto de vista probatório.

Enfim, o trecho acima transcrito demonstra o fenômeno irreversível da pós-modernidade que impacta na flexibilização das fronteiras entre o Direito criminal e o uso de negócios jurídico-processuais do âmbito privado, pela busca de eficiência penal e para desvendar, prevenir e cessar a prática criminosa organizada.


[1] DA SILVA, Élzio Vicente e RIBEIRO, Denise Dias Rosas. Colaboração Premiada e Investigação: princípios, vulnerabilidades e validação da prova obtida de fonte humana. Editora Novo Século, 2018, p.33.

[2] FILIPPETTO, Rogério; ROCHA, Luísa Carolina Vasconcelos Chagas. Colaboração Premiada: contornos segundo o sistema acusatório. Belo Horizonte, Editora D’Plácido, 2017, p. 138/141.

[3] Manual – colaboração premiada. Brasília. ENCCLA. 2014. Disponível em: Acesso em: 02 junho de 2020. Pág. 7.

[4] Disponível em: <https://pje.trf5.jus.br/pje/Processo/ConsultaProcessoTerceiros/listView.seam>; Acesso em: 03 junho de 2020.