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Contra a COVID-19, em Teresina, capital do Piauí, não há direitos?

O poder de polícia, manifestado pelo Decreto municipal nº 19.735, de 07 de maio de 2020, que regulamenta a Lei municipal nº 5.499, de 09 de março de 2020, visa limitar as atividades dos particulares, muitos deles pessoas jurídicas com objeto social classificado por essencial, que possam causar danos à sociedade.

A Constituição fixou proteção especial ao constitucionalismo e a teoria dos direitos fundamentais, na qualidade de limite ao abuso de poder e desvio de finalidade.

O coronavírus está abalando o equilíbrio federativo e as relações de poder, e só com o respeito aos valores destacados pela Constituição é que se pode formular soluções para o enfrentamento da pandemia.

A fim de confrontar essa situação excepcional os agentes públicos merecem dispor de ferramentas excepcionais desde que respeitem o sistema jurídico.

Como não existe um estado de pandemia previsto na Constituição, e como não foram declarados o estado de defesa (art. 136) e o estado de sítio (art. 137), as obrigações de fazer ou deixar de fazer algo (artigo 5º, II), e a garantia ao exercício de atividade econômica, independente de autorização de órgãos públicos (art. 170, § único, art. 176), ainda são conquistas históricas do Estado de Direito que merecem prevalecer e ser respeitadas.

A Lei municipal que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente do coronavírus possui redação conforme ao art. 5º da Lei federal da Quarentena (nº 13.979, de 06 de fevereiro de 2020).

O art. 6º da Lei municipal diz que é obrigatório, somente, o compartilhamento por pessoas jurídicas de direito privado dos dados que forem solicitados por autoridade sanitária.

Essa é a base legal nacional e municipal capaz de, validamente, obrigar as pessoas jurídicas de direito privado e as autoridades a fazer ou deixar de fazer determinado comportamento.

A ameaça advinda em Decreto acerca da possibilidade interrupção de atividade econômica, classificada como essencial (nos termos do Decreto nº 19.548, de 29 de março de 2020), caso a pessoa jurídica de direito privado não providencie o teste de seus funcionários (teste rápido, PCR ou Sorológico), em até 15 dias da sua publicação, é nítida prática abusiva de poder e desvio de finalidade porque se trata de matéria relativa ao direito civil, comercial, do trabalho, e a organização nacional de emprego e condições para o exercício de profissões, que são assuntos de competência da União (artigo 22, I, e XVI, da CRFB/88).

A obrigação determinada no art. 1º do Decreto é ilegal por não estar contida dentro dos limites de regulamentação previstos no art. 6º da Lei municipal, que trata, apenas, do compartilhamento – esse sim, previsto, legitimamente, no art. 2º do Decreto.

A consequência jurídica do descumprimento do art. 1º do Decreto é a cassação do alvará de localização e funcionamento da pessoa jurídica, e a interdição total das suas atividades (art. 9º), que, ao arrepio da Lei municipal e federal de enfrentamento da COVID-19, extrapola a competência municipal prevista no art. 30, I, da CRFB/88, e afronta a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019).

É dizer que um Hospital poderia ficar sem os auxiliares de serviço geral, copeiros, maqueiros etc. empregados por empresa cujo objeto é a prestação de serviços de limpeza, conservação, e de apoio operacional, com fornecimento de mão de obra terceirizada, caso seus mais de 100 (cem) funcionários não sejam testados em até 15 dias.

Só porque essa centena de cidadãos estão sobre o regime de um contrato de trabalho, celetista, desempenhando uma atividade econômica essencial à sociedade nesse cenário pandêmico, não é legítimo desejar se transferir ao empregador o dever do Estado (art. 196, da CRFB/88) de prover saúde e garantir o gozo de políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença, e de outros agravos, e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua proteção e recuperação.

O art. 1º do malsinado Decreto extrapola a regra de gratuidade prevista na lei municipal (art. 3º, inc.III, § 4º, inc.II – o direito de receberem tratamento gratuito) e federal (art. 3º, inc.III, § 2º, inc.II – o direito de receberem tratamento gratuito) de combate ao COVID-19.

A lei federal no seu art. 3º, § 4º, e a lei municipal, no seu art. 3º, § 6º, manda que somente a lei pode prever as consequências de responsabilização das empresas que não se sujeitarem ao cumprimento das medidas previstas nesse dispositivo legal.

Está classificado, na Lei da Liberdade Econômica, no seu art. 1º, o ato público municipal de cassação da licença ou alvará como condição para o exercício da atividade econômica essencial à sociedade em tempos de pandemia, logo, deve ser interpretada em favor da liberdade econômica, da boa-fé, e do respeito aos contratos, aos investimentos e à propriedade todas as normas de ordenação pública sobre atividades econômicas privadas (Decreto municipal nº 19.735, de 07 de maio de 2020, que regulamenta a Lei municipal nº 5.499, de 09 de março de 2020).

Ademais, o art. 197, da CRFB/88, prevê que são de relevância pública as ações e serviços de saúde, cabendo ao Poder Público dispor, nos termos da lei, e não via Decreto, sobre sua regulamentação, fiscalização e controle, devendo sua execução ser feita até por pessoas físicas ou jurídicas de direito privado, e nunca com o repasse desse custo ao particular (art. 198, § 1º).

É como se o art. 1º do Decreto estivesse criando nova fonte de financiamento da seguridade social, além daquelas previstas no sistema tributário nacional (art. 195, da CRFB/88).

Não é de competência municipal a instituição de empréstimo compulsório (art. 148, da CRFB/88) para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública, além de que, também, não é da competência municipal instituir contribuições sociais, de intervenção no domínio econômico e de interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas (art. 149, da CRFB/88).

A ilegalidade do art. 1º do malsinado Decreto se torna mais patente, ainda, em face da proibição constitucional (art. 150) ao município de Teresina, capital do Piauí, exigir tributo sem lei que o estabeleça (inc.I), cobrar tributo (inc.III) em relação a fatos geradores (por exemplo: ter mais do que 30 funcionários contratados para exercer atividade essencial) antes do início da vigência da lei que o houver instituído (alínea a), e no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que o instituiu (alínea b), e utilizar tributo com efeito de confisco (inc.IV).

O art. 1º do malsinado Decreto é medida arbitrária, antijurídica, passível de reparação (STF, RE nº 422.941/DF, relator Min, Carlos Veloso), e não se encaixa na competência, concorrente, municipal (art. 24, inc.XII, da CRFB/88) de legislar sobre a proteção e defesa da saúde.

Testar os cidadãos para produzir estratégias e empregar táticas mais eficazes de combate o coronavírus é recomendado pela OMS e pelo Ministério da Saúde brasileiro, mas a via adequada para isso não é obrigar, por Decreto, que as empresas paguem pelos testes aos seus funcionários, até 22/05/2020, sob pena de serem fechadas!

A Prefeitura de Teresina, capital do Piauí, avançou sobre a liberdade das empresas exercerem as atividades que o próprio Poder Público classificou como essenciais à sociedade nessa época de pandemia, tendo o Poder Judiciário, na apreciação urgente da liminar requerida nos autos do mandado de segurança nº 0811218-84.2020.8.18.0140, decidido pela manutenção da validade, eficácia e obrigatoriedade do malsinado Decreto, em 15/05/2020, cujos trechos da decisão merecem ser transcritos abaixo:

    “Enquanto o mundo inteiro está buscando meios para promover o isolamento social, empresários pretendem a todo custo executar o seu empreendimento. Contudo, os riscos da atividade empresarial, sejam eles causados por crises financeira, econômica ou mesmo por epidemias, devem ser suportados pelo empreendedor, sem que tais prejuízos sejam divididos com a população. Penso que a adoção pelo Município de medidas para conter o avanço da epidemia é bastante prudente e razoável. […] Além do mais, não creio que o réu invadiu competência da União para legislar sobre direito do trabalho, mas apenas adotou medidas para conter o avanço da epidemia para salvaguarda dos direitos fundamentais à saúde, que é de interesse local. Por tudo isso, creio que devo indeferir o pedido de liminar, porque a pretensão do requerente pode gerar aglomerações de pessoas, de modo a agravar ainda mais a saúde pública”.

Na exordial do mandado de segurança cita, ainda, o Sindicato dos Hospitais, Clínicas, Casas de Saúde e Laboratórios de Pesquisas e Análises Clínicas do Estado do Piauí, que o Prefeito da capital piauiense, em 11/05/2020, às 13h30, em entrevista na TV Cidade Verde, afirmou que não existem teste suficientes disponíveis no mercado para iniciativa privada.

Enfim, o Tribunal de Justiça do Estado do Piauí se manifestou no agravo interposto, suspendendo os efeitos de alguns dispositivos (Decreto nº 19.741/20, art. 2º, I, d, art. 3º, II, a, c, j), mas deixou a obrigação dos testes por conta das empresas para análise pela Justiça do Trabalho, o que foi feito, em 02/06/2020, às 16h04, pela arguta Dra. Elisabeth Rodrigues, da 6ª Vara do Trabalho de Teresina/PI, TRT da 22ª Região, MSCol nº 0000375-48.2020.5.22.0006, nos seguintes termos:

  “[…] restringir a obrigatoriedade dos testes de diagnóstico para o SARS-CoV-2 (Covid-19) prevista no Decreto Municipal nº 19.735, de 7/5/2020 c/c art. 4º do Decreto Municipal nº 19.741, de 10/5/2020, apenas aos empregados sintomáticos, ou seja, apenas àqueles que apresentem sintomas da doença Covid-19, sejam leves, moderados ou graves, os quais poderão ser identificados através da avaliação clínica a ser realizada pelo médico do trabalho da empresa, bem como para os empregados que tenham ou tiveram contato com casos confirmados.”

À derradeira, cabe destacar trecho da decisão judicial trabalhista que: “[…] não se revela razoável impor à impetrante a testagem em massa dos seus trabalhadores, inclusive dos assintomáticos […]. A obrigatoriedade dos testes em relação aos empregados assintomáticos mostra-se, portanto, inadequada, desarrazoada e desproporcional, pois não traz resultado relevante para o controle da disseminação do vírus.”